A Semana de Arte Moderna sempre (ou quase) foi vista como uma a ruptura das formas de pensar as artes, um ponto de inflexão para as mudanças de percepções das artes plásticas e da literatura, uma mudança de paradigma, um cânone.
Ops! Cânone vem do grego κανόνας, que significa regra ou lei. Nesse sentido, não é correto dizer que um evento de ruptura pudesse tornar-se uma referência canônica para estudar o Modernismo brasileiro ou que seus participantes fossem percebidos como autores canônicos (uma ideia teológica para imprimir vida regrada, vida exemplar).
A Semana de Arte Moderna não poderia ser considerada como um evento canônico para inaugurar o Modernismo. Sua ideia libertária ocorreu e tomou as proporções que tomou porque (a) aconteceu na Província de São Paulo, palco da industrialização nacional, e, como já falei anteriormente, contou com (b) o patrocínio da velha oligarquia cafeeira. Também, pode se tornar inconciliável o uso do termo para a produção do movimento modernista.
Por isso, a palavra cânone, no sentido em que é comumente utilizada hoje na esfera da arte, e capaz de provocar urna reação ao de desconforto. Pelo menos para quem está habituado aos tantos textos críticos que se dedicaram nas últimas décadas a denunciar o cânone como um instrumento de exclusão que tende a reproduzir os interesses e os valores de um delimitado grupo, que o estabelece enquanto representante da totalidade de uma dada cultura (ALMEIDA, 1997p. 182).
Pensei sobre essa incombinável canonização da Semana de Arte Moderna; quando revi alguns trechos de O perfeito cozinheiro das almas deste mundo, um autêntico ANDRADE, Oswald et al., de 200 páginas, composto entre os meses de maio e setembro de 1918, na garçonnière, situada na rua Líbero Badaró, 67 – 3º andar e mantida pelo Garoa, conhecido também como Miramar.
A obra, na verdade trata-se dum caderno de 33x24cm, onde os frequentadores escreviam desde pilhérias, pensamentos, poesias, crônicas ligeiras dos acontecimentos, entre outros gêneros. Haroldo de Campos definiu a obra como um “livro-álbum, peças de um mosaico dispersivo, livro-caixa-de-surpresas numerado derrisoriamente como um livro-razão”. Ou “a promessa (…) do livro mais prático e mais moderno deste século [século XX] de grandes torturados”, nas palavras do autor principal.
Era um diário, uma brincadeira desordenadamente escrita, colada por aqueles marotos e por Tufão[1]:
Reflexões culinarias –[2]
Ferrignac – Foie-gras à “Pimpona”.
Miramar – beef à la mode do sentimentalismo
João de Barros – picadinho do “donjuanismo” itaporanguense
Cyclone – Mayonaise da nevrose.
Vivianocook
Veremos mais à frente as especialidades literárias e artísticas que esses nossos cozinheiros desenvolveram para nos deliciar ou não com suas propostas nada canônicas, que costumamos chamar de Movimento Modernista.
Até o próximo post.
[1] Uma das formas como Maria de Lourdes Castro, a Deisi, amante de Oswald de Andrade, era conhecida. São atribuídos também Tufãozinho, Miss Cyclone (com tônica na primeira sílaba). Miss Cyclone era a figura símbolo da mulher moderna em busca de liberdade, de afirmação e de independência, como assinala Mário da Silva Brito, no prefácio da edição de 1982 de O perfeito cozinheiro das almas deste mundo.
[2] Grafia original.
Referências
ALMEIDA, Tereza Virginia. Canone e a Ciclone: a ausência lilás da Semana de Arte Moderna. Travessia – Revista de Literatura, Florianópolis, ago. 1994/jul. 1995., nº 29/30 3 p.181-222.
ANDRADE, Oswald de. O cozinheiro perfeito das almas deste mundo. São Paulo: Globo, 1992.
GONÇALVES, Marcos Augusto. 1922: a semana que não acabou. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.