Floresta de cavaletes[1]

Em nosso último post falamos sobre o texto de Compagnon[2], onde especulávamos a paternidade do Modernismo no Brasil: a Grande Guerra. Decidi estabelecer um paralelo entre o Concerto da Europa e as Secessões alemãs e austríacas, para depois conversamos sobre Anita Catarina Malfatti, não com a profundidade que ela merece, mas iniciarmos por figura emblemática do nosso Modernismo, contando alguns detalhes biográficos de Babyinha[3]

Anita Malfatti, aos 23 anos, em 1912

Se a paz invade o coração, como canta Gilberto Gil (eu prefiro particularmente a versão de Zizi Possi, do álbum Sobre todas as coisas), a guerra invade os corações, a economia, as relações diplomáticas e artísticas. Voltemos às razões da Primeira Guerra Mundial e a possiblidade de ter sido ela a progenitora do nosso Modernismo. Vamos lá?

As décadas anteriores à eclosão do conflito não foram tão pacíficas como um equivocado possa imaginar. Desde as derrotas napoleônicas, o continente europeu continuou a conviver com agitações pontuais e limitadas: Guerra da Crimeia, Guerra Italiana, Guerra das Sete Semanas, Guerra Franco-Prussiana e a Guerra Russo-Turca, para citar apenas os conflitos em solo europeu. Além desses conflitos armados, muitas crises diplomáticas também tencionavam as relações internacionais. Porém, quando o incidente em Sarajevo envolveu as grandes potências europeias: Grã-Bretanha, França, Rússia, Áustria-Hungria, Itália e Alemanha, a cobra acendeu o cachimbo para fumar e não foi o cachimbo da paz. Esses acontecimentos esgarçaram por completo Concerto da Europa[4], estabelecido desde 1815, em Viena[5].

Para Watson (2004)[6], o período inicial do Concerto da Europa perdurou de 1818 até 1848 e parecia restaurar a paz almejada pela Europa, porém, em seguida (1848-71) essa ideia de paz começou a se perder com a incidência daqueles conflitos, configurando uma fase revolucionária da Europa. De 1871 até 1914, foi que o Concerto desandou e não havia mais como consertá-lo. Eclodia a Primeira Guerra Mundial.

Era esse o ambiente em que as expressões artísticas refletiam o desencanto com a ideia de bela Europa, com os padrões estabelecidos pelas escolas anteriores. Tudo aquilo parecia não fazer mais sentido, não havia respaldo para continuar refletindo sobre um mundo de cujo aprendizado extraíam-se crises diplomáticas, nacionalismo exacerbado… Era preciso recriar as artes. Vivia-se uma paz armada e o incidente de 28 de julho de 1914 serviu como pretexto para que se perdesse a paz e se mantivessem as armas para o iminente conflito, em gestação desde 1848. O assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro do Império Austro-Húngaro, superlativou as diferenças existentes no Concerto da Europa: a vivência e quotidiano não refletiam os acordos diplomáticos, tênues e sujeitos a atropelos da força bruta.

Na Alemanha e na Áustria, artistas como Gustav Klimt[7] já lidavam e viam nesse desgaste uma forma de atrelar sua expressão de arte ao momento delicado. Surgiram as Secessões[8].

O descontentamento com a rigidez acadêmica, no final do século XIX, já havia gerado uma série de dissidências no meio artístico do país, conhecidos como Secessões. Essas associações estabeleciam seus próprios critérios, agrupavam artistas e promoviam suas mostras […] Em Berlim, galerias como as de Paul Cassierer e Fritz Gurlitt, além d própria Secessão local, mostravam com frequência os novos artistas europeus, entre eles Van Gogh e Munch (GONÇALVES, 2012, p. 61)[9].

Anita Malfatti

Assim o mundo artístico europeu enfrentava a onda nacionalista que assolava o continente, através da vanguarda. Era, sim, um movimento cosmopolita; e essa vocação acabou atraindo Anita Malfatti para estudar em Berlim.

Anita Malfatti nasceu em 2 de dezembro de 1889, segunda filha de Samuel Malfatti e Eleanor Elizabeth Krug, com uma séria atrofia na mão direita, fato que levou a família a mudar-se para Lucca, na Toscana, onde procurou por ajuda médica, contudo o resultado da intervenção cirúrgica não foi o que todos esperavam e Babynha teve que adaptar-se à mão esquerda[10].

Após a morte do pai, em 1901, a vida dos Malfatti tomou um rumo diferente: sua mãe mudou-se para a casa dos pais e Anita ingressou na escola americana Mackenzie, onde conheceu e tornou-se amiga das irmãs Hermantina e Helena Shalders, com quem viajou para a Alemanha. Em geral era assim que as famílias abastadas davam curso à educação dos filhos: mandavam-nos para o Velho Mundo.

– Espera! Mas Dona Betty não podia arcar com essa despesa, mesmo pintando e dando aulas particulares dos sete idiomas que dominava!

– Meu amigo, quem tem tio Jorge Krug não morre pagã; ele foi o responsável por financiar os estudos de Babynha, além-mar. Depois ela foi amparada pelo mecenas Freitas Valle, de quem já falamos aqui.

Lovis Corinth – autorretrato

No caleidoscópio de novidades urbanas e artísticas de seu novo lar, Anita tomou lições de pintura com vanguardistas das Secessões, como Fritz Burger e Lovis Corinth que foi o seu mestre na estada alemã. Fortemente influenciada pelo expressionismo praticado, sua volta para o Brasil foi acelerada com os acontecimentos que o frágil Concerto da Europa não conseguiu barrar: a Primeira Guerra Mundial.

Paralelamente aos acontecimentos no Velho Mundo, São Paulo desabrochava, saía do casulo colonial e seguia como a locomotiva do Brasil, empunhando sua picareta civilizadora[11].Esse foi o terreno fértil para Anita Malfatti começar seus trabalhos; trazia ela o gérmen vanguardista, e em 1914, realizou sua primeira exposição individual na Casa Mappim, quando apresentou os estudos da pintura expressionista feitos no ateliê de Lovis Corinth.

Calma, a treta entre nossa artista e Lobato foi na Exposição Individual de 1917, quando Anita volta dessa vez dos Estados Unidos.  Vamos conferir no próximo post?


[1] A chegada do Modernismo no Brasil – Conferência de Anita Malfatti, em 1951, na Pinacoteca do Estado. Essa foi a expressão com que a artista se referiu ao ateliê do seu mestre Burger, em Berlim.

[2] Compagnon, O. 2019. Le modernisme brésilien est-il un enfant des tranchées ? In Dumont, J., Fléchet, A., & Pimenta Velloso, M. (Eds.), Histoire culturelle du Brésil : XIXe-XXIe siècles. Paris : Éditions de l’IHEAL. doi :10.4000/books.iheal.8682

[3] Apelido de Anita Malfatti no ciclo familiar.

[4] Vigevani, Tullo. (1999). Ciclos longos e cenários contemporâneos da sociedade internacional. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, (46), 5-53. https://doi.org/10.1590/S0102-64451999000100002.

[5] STEVENSON, David. 1914-1918: a história da Primeira Guerra Mundial. Barueri: Novo Século Editora, 2016.

[6] WATSON, Adam. A Evolução da Sociedade Internacional: Uma Análise Histórica Comparativa. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2004.

[7] Barbosa, Enio Rodrigo. (2012). O artista da transição. Ciência e Cultura, 64(3), 56-58. https://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252012000300019

[8] Sezession

[9] GONÇALVES, Marcos Augusto. 1922: a semana que não terminou. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

[10] CAMARGOS, Marcia. Semana de 22: entre vaias e aplausos. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002.

[11] De Diamantina, Minas Gerais, Escritor mineiro, folclorista, nasceu em Diamantina, Minas Gerais no dia primeiro de novembro de 1837, e faleceu no dia 14 de setembro de 1898. Cursou o Seminário de Mariana e a Faculdade de Direito de São Paulo foi um infatigável estudioso dos nossos sertões.

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